domingo, 1 de agosto de 2010

44 - Rogério Coelho "Pedaços d'uma vida"


-Escola Primária do Chão da Parada:

O Rogério Coelho:

-O Rogério nunca frequentou a Bordalo, mas se o Portugal do fim dos anos 50 e inicio de 60, fosse menos cinzento e todas as crianças tivessem direito às mesmas oportunidades não se teria ficado pela antiga 4ª classe.
-Comecei a conhecê-lo, quando, criança, ia com os meus pais para uma propriedade agrícola que possuíamos perto da pequena casa onde ele vivia com a mãe, a que chamávamos «as pedreiras» (aquilo realmente eram só pedras, silvas e barro). A casa seria na altura a casa mais pobre da aldeia, e a mãe não representaria o tipo de mãe que todos os meninos gostariam de ter, ou porque para tal era incapaz ou porque a vida disso a impedia. Sempre que passava frente aquela casa, era com imensa tristeza que os meus olhos para ela se dirigiam.
-Fui crescendo até que antes de perfazer os 7 anos, iniciei a instrução primária. Para surpresa minha, aquele menino que eu sabia ser mais velho um ano do que eu, sentava-se na nossa fila. Na altura, e como na escola apenas havia, e continua a haver, 2 salas de aulas, os alunos da 1ª e da 3ª classe, estavam numa sala e os da 2ª e da 4ª classe, noutra. A nossa professora, a Dona Augusta (houve outras, mas foi esta a que mais me marcou), senhora de uma bondade e paciência ilimitadas como que se tornou numa segunda mãe para o Rogério.
-Se no primeiro ano de escolaridade não tinha conseguido passar de imediato para a 2ª classe, a partir daquele mês de Outubro de 1958, nunca mais este meu colega de ano chumbou e fazia parte normalmente dos alunos com melhores resultados. Tal não impedia no entanto que a famosa régua por vezes apenas parasse depois de encontrar as palmas das suas mãos.
-Junho de 1962, enquanto nós esperávamos ansiosamente pela chegada do dia do exame final da 4ª classe, a realizar na grande cidade, as nossas mães tinham outros problemas. É que o Rogério andava normalmente descalço, e as camisas nem se lhes reconhecia a côr original, e seria impensável ir assim com ele para exame. Rapidamente se organiza uma comissão, que seria responsável pela compra da roupa adequada a tal acontecimento, e não menos importante, o indispensável banho de forma a que as gentes da cidade não se apercebessem da real condição do nosso colega. O banho foi dado numa das casas dos mais afortunados, e uma vez os sapatos, e o completo de fato e gravata comprados estava em condições para entrar num dos táxis contratados para a grande viagem. Automóveis particulares não os havia, se exceptuarmos os das tia e sobrinha Ribeiro, que já na altura eram professoras no ERO e na Bordalo, mas a aldeia nunca contou muito com elas. Elas que nem se dignavam dar-nos uma boleia quando por nós passavam na nossa caminhada diária a pé para Tornada, onde frente à igreja esperávamos a camioneta dos Capristanos .
-No exame final, numa escola ali ao lado do posto da Policia de Viação e Trânsito perto do Parque, o nosso amigo não teve qualquer problema e no fim ainda nos acompanhou a beber uma gasosa, ou seria uma Canada Dry, que os nossos pais nos ofereceram na Esplanada do Parque. A mim até cerveja me propuseram mas com 10 anos apenas, achei o sabor amargo e não gostei. Terminada a festa, depois dumas voltas nas bicicletas de aluguer do Parque, o nosso conterrâneo teria que procurar trabalho e, claro, no dia seguinte já estava numa oficina de bicicletas que existia perto da Garagem Caldas, na rua que ia para a Bordalo Pinheiro e depois disso ainda andou por outras oficinas do ramo. No entanto apenas trabalhou por conta de outrem até partir para a tropa.
-Neste tempo já nós entre os 13 e 15 anos íamos sozinhos para a praia de Salir, onde havia meninos mais afortunados que nós que se passeavam nuns barcos que possuíam uns motores atrás, os tais fora de borda. Faziam corridas e tudo. Aí começamos a pensar porque não construirmos um barco parecido com aqueles. Para tal faltava-nos no entanto o engenho, quando alguém se lembra do nome do Rogério, que por vezes aparecia por ali numa maravilhosa V5 que, creio já andava a mais de 60 Kms por hora. Uma velocidade impressionante.
-Explicamos-lhe o que pretendíamos e ele, de imediato meteu mãos à obra. Aconselhou-nos a comprar um barco de alumínio com cerca de 2 metros de comprimento, que o problema do motor seria por ele resolvido. Alguns dias depois eis que atrelado à sua V5 chega o famoso barco. Só que o motor, não funcionava a gasolina, mas sim através de um engenhoso sistema de pedais com uma corrente, copiado das bicicletas, que accionava uma hélice no exterior, na popa e fazia navegar o barco. Não sei se algum dia competimos com os fora de borda da baia, mas no rio de Salir e com a maré cheia fazia a inveja de todos aqueles que não possuíam barco nenhum. Nunca esqueci este episódio da minha meninice. Sim que não teria mais que 13 anos na altura.
-O Rogério entretanto continuava no seu trabalho nas bicicletas até que foi chamado para a tropa. Voltou, casou e de imediato abriu uma pequena oficina numa rua da aldeia, que ainda lá está. Perdi um pouco o contacto com ele, e quando por vezes por lá passava, tendo-lhe até lhe chegado a comprar uma bicicleta para o meu filho mais velho, parecia-me que o negócio funcionava, agora até já tinha um tractor com que arredondava os fins de mês em pequenos trabalhos agrícolas para clientes eventuais. Notava-lhe no entanto uma certa dureza no olhar por vezes quando nos cumprimentávamos. Contou-me que se dedicava à caça, e ia trabalhando. Até que um dia vejo na Gazeta a noticia que não me surpreendeu. Numa das caçadas e com um ou dois copos a mais, a sua arma matara o seu habitual companheiro daquelas andanças. Pagou a dívida à sociedade com a respectiva perda de liberdade, e voltou a instalar-se na pequena oficina da aldeia. Mas se a reinserção de um ex-prisioneiro é difícil numa grande cidade, numa aldeia como o Chão da Parada, é impossível.
-O Rogério nunca mais foi o mesmo e há alguns meses, decidiu acabar com todos os seus problemas. Ainda não teria 60 anos. Eu lembro-me sobretudo do meu colega da Primária e do barco a motor movido a pedais.

Até um dia!

J.L Reboleira Alexandre

---------------------------------------------------------------------------------------------

COMENTÁRIOS:

Mónica Marques disse...
Não há dúvida de que todos temos estórias por detrás da história pela qual somos verdadeiramente conhecidos. E o Rogério era um Ser humano com uma história preenchida mas que infelizmente tomou outros rumos. Um bem haja para este escrever da sua memória; considero no entanto que a Aldeia acolheu o Rogério depois da sua saída em liberdade mas "gato escaldado de água fria tem medo". Ao contrário do que acontece nas grandes cidades acho que na freguesia ninguém lhe virou as costas mas, de certa forma, nada volta a ser o que era quando tamanho incidente mina a confiança das pessoas. Obrigado pelo momento. Mónica Marques (Chãodaparadense com orgulho, desde 1983) =0)

15 de Setembro de 2010 00:05

Sem comentários: