sábado, 20 de março de 2010

16 - Naufrágio nos mares do Talvai

NAUFRÁGIO NOS "MARES DO TALVAI" NO INÍCIO DA DÉCADA DE SESSENTA:
-Como a velha Quinta do Talvai teve, em épocas mais gloriosas, a característica de ser o maior empregador da aldeia na cultura intensiva do arroz, nos tempos da minha jovem adolescência era vista como o local onde muitos dos pais dos miúdos da terra tinham ganho o sustento para muitos de nós. Se as histórias que os mais velhos nos contavam, sobre a forma como na altura se trabalhava, sobre as relações entre patrões e trabalhadores, ou entre os nativos da terra e os trabalhadores migrantes, os "bimbos", como ainda há bem pouco tempo eram chamados, muitos deles acabando por lá ficar através do casamento, não eram propriamente de embalar, o facto é que toda aquela área húmida do Chão da Parada tinha sobre nós, miúdos, uma atracção muito especial.
-Quem passa hoje na estrada alcatroada para Salir do Porto, nota que naquela zona, os terrenos agrícolas estão num nível inferior ao da via, hoje de alcatrão, naquele tempo de pedra e areia. A razão para a sobre-elevação da via é obvia. Trata-se dum local de inundações frequentes.
-Ora, sendo a maior percentagem de terrenos agrícolas da aldeia possuída pela Quinta, todos os outros habitantes eram de forma geral proprietários de pequeníssimas parcelas de terra, geralmente de boa qualidade, mas tão distantes umas das outras, que o dia era praticamente perdido nas lentas viagens de burro de e para o brejo, os camarotos, as pôças ou o arneiro-pequeno da estação.
-Terra madrasta, como muitas outras do Portugal do início da década de 60, muitos dos homens adultos, viam que não seria ali que poderiam criar condições razoáveis às esposas e aos filhos. A solução era partir. Alguns atarvessaram os Pirinéus, a salto, mas a maioria dos homens do Chão da Parada, emigravam para o mar. Assim, nomes como Santa Maria, Vera Cruz, Império, Infante Dom Henrique, e outros, que serviam de êlo de ligação entre a Metrópole e as Colónias, para as gentes da terra eram sinónimos de ganha-pão e de pequenos luxos exóticos que de outra forma seriam inacessíveis às gentes humildes da minha aldeia. Basta pensar no prazer que eu sentia, quando ao abrir as malas de meu pai, lá via umas bananas, uns ananases, algumas barras negras de puro chocolate de São Tomé, ou, luxo supremo, rolos de papel higiénico. Para não mencionar os relógios de marcas esquisitas, pequenos rádios portáteis adquiridos nos portos francos das Canárias (isto dos Off-Shores são história antiga), ou objectos de mais valor, como aconteceu com um dos meus ex-colegas da Bordalo, que, se nos ler se vai reconhecer. É que ele teve até direito a uma Honda de 50 cms, a 4 tempos, vinda directamente do Japão, que debitava um som melódico maravilhoso, em nada parecido com o das nossas ruidosas Casal ou Zundapp, a 2 tempos, que faziam um barulho ensurdecedor. Finalmente, para as gentes da terra, partir, não de um aeroporto qualquer, mas do porto de Lisboa, era a coisa mais natural e fazia parte de nós.
-Como consequência desta forma de vida, eram as esposas, mães, que geriam a economia familiar, e faziam o melhor que podiam para, sòzinhas, e geralmente iletradas, educarem os filhos.
-A nossa vida de miúdos a partr dos cinco anos, chovesse ou fizesse Sol, era passada na rua. Acabadinhos de chegar da escola, aquecido e comido o prato de sopa que ficava da véspera, se houvesse "cheia" no Talvai era certo e sabido que o resto das nossas tardes seria passado a ver a água, sempre à espera que a mesma galgasse a estrada, ou então a construir barragens altíssimas em areia, no local onde se encontra o edifício da Associação.
-Teria eu os meus 12 ou 13 anos, numa dessas tardes, após animada conversa com os outros garotos da minha idade sobre viagens de barcos e bateiras, eis que avistamos um velho bidão de gasóleo abandonado, num dos terrenos alagados, junto à ponte da Vala Real (hoje insignificante e quase invisivel, no meio da vegetação intensa). Incapazes de refrear impulsos próprios de miúdos daquela idade, logo ali tomámos a decisão de ir buscar o improvisado barco e sentirmos o prazer e a liberdade de dominarmos aquilo, num equilibrio mais que instável, sobre as águas barrentas que cobriam a várzea. Sendo diminuto o espaço interior, cada viagem seria feita apenas por um passageiro de cada vez. Foram vividos momentos de prazer intenso, nas nossas curtas viagens de alguns metros, com o bidão bem dominado com o auxílio de um longo pau, que fincávamos no chão de lodo para o movimentarmos sobre as águas. Sentiamo-nos qual Simbad, o maior de todos os marinheiros. De cada vez que partíamos ou voltávamos à margem, era como se o barco onde os nossos pais andavam, acostasse nos cais de Alcântara ou da Rocha do Conde de Óbidos.
-Mas o fim estava anunciado, e poderia ter sido bem triste, quando, estando eu em plena euforia no meio das águas turvas do "Atlântico", o barco por efeito de um qualquer movimento mais brusco começou a meter água e, afundou. Encharcado dos pés à cabeça, lá me consegui dirigir para terra firme e sentei-me ao Sol de Novembro para ver se conseguia secar as roupas, antes de voltar para casa.
-Mas como os adultos têm sempre a mania de estar onde não devem, passa na altura uma conterrânea que, do alto do seu assento na albarda do burro, verificou que alguma coisa de errado se passava com o Zé Luis e, claro, fiquei logo ali a saber que a Mari Reboleira, minha mãe, teria conhecimento do sucedido. Fiquei naturalmente um pouco preocupado, mas como ainda andei mais umas horas com a roupa vestida, cheguei a casa já a noite ia alta mas relativamente bem seco.
-Ouvi um raspanete dos grandes. Eu que normalmente apanhava as gripes todas, nesse ano seria ainda pior. E depois, o que não ajudou nada foi mesmo a tentativa de ter tentado enganar a minha mãe, não lhe contando a verdade desde o inicio. E a sentença foi lida naquele instante:
-Zé sabes que eu nunca te bato, mas quando o teu pai regressar de viagem daqui a duas semanas ele vai ter que saber, e aí não me responsabilizo pelas consequências.
-É claro que desta vez, à chegada de meu pai não fui como habitualmente, vasculhar as malas à procura de prendas tropicais, nem vou aqui contar como se passaram as coisas nos momentos que se seguiram.
-Penso que no dia seguinte não fui à escola. É que a viagem para as Caldas ainda se fazia na altura numa velha bicicleta pasteleira, e o selim era de cabedal bem duro!
-O meu pai tem hoje 89 anos, e por vezes ainda se fala nesta aventura. Nem ele nem eu a esquecemos. O meu gosto pela água manteve-se no entanto intacto e o prazer que me continua a dar o ouvir bater as ondas na terra é o mesmo. Mas viagens em bidões de gasóleo, garanto-vos que nunca mais fiz.
J.L.Reboleira Alexandre
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NOTA: Este artigo foi publicado recentemente no blogue do E.R.O. e por ser do interesse das gentes da freguesia de Tornada, com consentimento do autor publiquei-o aqui.

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