sexta-feira, 17 de setembro de 2010

51 - A Professora Francelina de Sousa

-Notícia da Gazeta das Caldas online


Francelina de Sousa, 89 anos, professora primária e uma vida dedicada ao ensino:

-Agora reformada, Francelina recorda com grandes pormenores as vicissitudes de uma carreira que atravessou grande parte do século XX. 

Completa 90 anos no próximo mês de Fevereiro e desde os 20 que é professora primária. A caldense Francelina de Sousa sente saudades de ensinar, pois desde muito nova que sempre quis dar aulas, seguindo o exemplo do seu pai, também professor.
Hoje recorda as escolas por onde passou e conta como se ensinava desde há 50 anos.
Ficou quase ofendida quando o seu pai a questionou se queria ou não continuar a estudar.
Vivia na sua terra natal, Tornada, com a mãe e o pai, que era o professor primário daquela localidade. “Claro que sim, não poderia ser de outra forma”, recorda hoje Francelina de Sousa, que dedicou toda a sua vida ao ensino em várias escolas primárias do concelho caldense.
Ao 10 anos foi para a secção feminina do Instituto Sidónio Pais, em S. Sebastião da Pedreira, Lisboa. Lembra que seriam duas dezenas de raparigas do seu ano e tinha então 20 anos quando foi a estagiar na Escola nº 6 em Lisboa. “Não era uma escola fácil pois recebia alunos do Casal Ventoso…”, contou a docente sobre o começo da sua carreira no início dos anos quarenta. E foi avisada: as novas professoras têm que dar reguadas sempre que os alunos se portem mal.
“Eu mal tinha força e nunca defendi tal método. Só muito raramente o apliquei pois preferi sempre conversar e tentar levá-los de outras formas”, conta.
Quando soube que iria ser colocada no distrito de Setúbal “até me parou o relógio no pulso de tão nervosa que estava”. Custava-lhe ficar tão longe de casa, mas afinal na sua primeira escola só para raparigas – como era habitual - em Abela (Santiago do Cacém) foi muito bem recebida e até lhe tentaram arranjar noivo para que ficasse naquela região.
O problema era o salário: ganhava 500$00 (2,5 euros) e pagava 300$00 (1,5 euros) de alojamento. O resto guardava para comprar as linhas pois nessa altura começou a fazer croché. E assim sendo “era o meu pai que me continuava a pagar para eu me poder vestir, calçar e pagar as viagens pois o meu salário não chegava!”.
Apesar de tudo, guarda boas memórias da sua estadia em terras do Sado até porque “era muito alegre, brincalhona e gostava de cantar com os miúdos”, disse. Organizou uma festa e com a colaboração dos padres das terras, “sempre que era preciso, organizava as aulas da catequese”. Naquele tempo não havia grande diferença entre a Igreja e o Estado. Antes pelo contrário.
Depois de um ano lectivo numa escola na Lourinhã, Francelina de Sousa consegue vir para Tornada, em 1944, para leccionar na escola masculina. “Tomei o lugar do meu pai, entretanto reformado”, contou, acrescentando que, apesar de ter chegado a casa, não acabou o ano lectivo pois “conheci o meu futuro marido e ele queria casar, o que me levou a pedir a exoneração”.
Casou em 1945 em Tornada e veio morar para as Caldas para a Rua Sebastião de Lima. Em 1954, porque as despesas eram muitas, regressa ao ensino e lecciona na cidade durante seis anos, tendo Integrado o quadro de agregados do distrito de Leiria.
À boleia por falta de transporte:
Francelina Sousa passou por escolas na Praça do Peixe e no Bairro da Ponte tendo leccionado em escolas masculinas e femininas.
Entretanto efectivou-se na Foz do Arelho, mas recorda que não era nada fácil a questão dos transportes. Leccionou a rapazes, durante o ano lectivo de 1959/60.
“Havia de manhã uma camioneta, mas à tarde era difícil regressar, muitas vezes vinha de boleia com o peixeiro”, recordou a professora. Depois a escola não tinha alunos suficientes para duas professoras e Francelina de Sousa, como era a mais nova, volta a mudar de estabelecimento, desta vez para o Chão da Parada.
Agora ia de camioneta até Tornada e depois a pé pela ladeira dos Moinhos. “O meu pai sabia o que custava e então estava todos os dias à minha espera, junto à Igreja de Tornada, para me acompanhar à escola”, lembrou. Depois de ter estado um ano naquela escola, Francelina de Sousa concorreu para Salir de Matos. Acabou por leccionar naquela escola durante quatro anos e também se recorda da dificuldade dos transportes. Tinha que ir com colegas pois naquela época já havia algumas mulheres com carta de condução.
Francelina de Sousa é mãe de quatro filhos e quanto à forma como geria o seu tempo, diz que “tinha que ter empregada e o meu marido tinha que fazer muitas vezes as compras”. Isto, apesar do seu esposo também ter uma vida muito ocupada pois era dono de uma empresa de camionagem.
“O meu marido disse-me para concorrer para Salir do Porto pois ao menos tinha comboio”, passando a fazer agora os percursos de uma forma mais descontraída, pois sabia que podia contar com a automotora. “Como o meu marido era empresário, aquelas que eram esposas de funcionários públicos passavam sempre à minha frente”, contou, lamentando não ter conseguido colocação mais cedo nas Caldas da Rainha, pois só em 1974 consegue ficar definitivamente na cidade.
Francelina de Sousa termina a sua carreira na Escola Primária do Bairro dos Arneiros, escola que estreou e onde se reformou aos 70 anos, já no início da década de 90.
Antigos alunos ainda a reconhecem na rua:
Histórias não lhe faltam ao longo da sua carreira. Como a de uma menina repetente no Bairro dos Arneiros que iria chumbar mais um ano. A mãe apareceu-lhe com um grande ramo de flores. “E eu disse-lhe a senhora deve estar enganada e ela explicou-me que eu tinha feito o que ninguém ainda tinha conseguido, que foi colocar a menina a falar”. Francelina de Sousa recorda-se de, apesar de “ser uma menina muito parada”, ela ter feito um grande esforço para a ajudar.
Durante 16 anos leccionou na Escola do Bairro dos Arneiros e deu sempre aulas de manhã, encarando o estabelecimento como uma segunda casa. Chegou mais tarde a ser directora daquela escola.
O que se ensinava então à primeira classe? “A saber ler, escrever, contar e saber também um pouco de História e de Geografia”, resumiu a docente.
Quando foi para Salir do Porto houve um pai que lhe deu uma régua, dessas para aplicar castigos, “mas eu não fazia uso dela”. Lembra-se também do marido refilar com ela pois ficava na escola até às 18h30, ao que Francelina lhe respondia “eu é que sei o trabalho que lá tenho!”.
A professora recorda que era complicado ensinar a todas as classes na mesma sala de aula. Chegou a ter um ano lectivo com 40 alunos no Chão da Parada. No ano seguinte as entidades escolares dividiram a classe, contratando uma nova docente.
Fica contente quando os seus alunos ainda a reconhecem na rua e lembra que gostava de saber o que se encontravam a fazer. E ficava triste sempre que via alunos com capacidade a deixar de estudar.
Ao longo dos anos viu aligeirar-se o programa escolar. “Antes tinha que se decorar muita coisa, mas para o fim já se pedia mais aos alunos para compreenderem a matéria”, disse.
Recorda que não teve grandes motivos para zangas, apenas se lembra que quando foi o 25 de Abril, estava em Salir do Porto, e mandaram as professoras “queimar os livros”.
Os novos centros escolares com tantos alunos são opções que lhe fazem confusão. “Custa-me que tirem as crianças tão novinhas de ao pé das mães”, diz. Acha que muitas passam muito tempo nos transportes e “não vêem as mães ao almoço nem ao lanche”. No entanto, aprecia que as crianças tenham mais condições que auxiliem o processo de aprendizagem.
Durante vários anos Francelina de Sousa não faltava aos jantares anuais de homenagem aos professores, “mas agora deixei de ir pois já não conheço ninguém”. Hoje dedica-se à família, ao croché e vai ao café com as amigas. Vai diariamente à missa e reza, por exemplo, pelos mineiros do Chile presos na mina, situação que a impressiona e, por isso, pede que estes tenham “coragem e força para ultrapassarem a situação”.

Natacha Narciso

Sem comentários: